Uma minificção canalha para acabar a semana
A família não ficou demasiado perturbada quando Ezequias morreu, vítima da inopinada queda de uma das letras gigantes suspensas na fachada do seu centro comercial favorito. Receberam a indemnização proposta para compensar o desaparecimento do pai, sogro, avô e bisavô sem dar mostras do mais ténue desejo de regatear. A cerimónia fúnebre decorreu sem novidades e antes de regressarem a casa, com o recipiente das cinzas seguro num saco de uma cadeia galega de pronto-a-vestir, rumaram ao lugar onde Ezequias vivera o derradeiro capítulo de uma existência ocupada por rotinas, desilusões e sofrimentos avulsos. Sentaram-se no mesmo "food court" em que o homem de cabelos brancos e óculos com lentes garrafais passava as tardes a mirar lojistas com idade para serem suas netas. Cada qual foi buscar a sua comida pré-fabricada de eleição e ingeriram no mais absoluto silêncio as calorias discretamente anunciadas pelos fabricantes. Terminadas as refeições, o bisneto encarregou-se de espalhar o que restava do ancião pelos corredores do centro comercial. Avós e mãe aprovaram silenciosamente o acto e dirigiram-se para a saída. Lá fora, meia-dúzia de homens empoleirados num andaime davam o seu melhor para repor uma enorme letra "G" ligeiramente amolgada.
2 Comments:
Excelente.
Abraço e obrigado pela mensagem...
Diz-me que isto é do teu novo livro
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