Thursday, May 10, 2007

E não sei porque escrevo isto

Há pouco mais de quatro horas despedi-me do meu pai. Os senhores do Cemitério do Alto de São João faziam o possível por lograrem a invisibilidade mas era evidente que não podíamos prolongar o acontecimento pela manhã dentro. Já dentro do crematório lembrei-me da solidária azáfama do velho taxista a inventar faixas de rodagem inexistentes para combater os pisa-ovos cumpridores do Código da Estrada que enchiam a Rua Barão de Sabrosa. Mesmo assim cheguei atrasado ao encontro com o José Ralha, pelo que cumprimentei apressadamente quem já lá estava - os meus três irmãos, a minha mãe, a mãe dos meus irmãos mais novos, os irmãos dos meus irmãos mais novos, os meus amigos José Eduardo e Andreia, a namorada do meu pai, amigos do meu pai, amigos da família... - e sentei-me perto do meu avô. Ajudei-o a levantar-se quando chegou o momento de ser quebrado o silêncio e agarrei-lhe o braço enquanto aquele homem irrepetível, até porque o molde perdeu-se na sucessão das décadas, vencia em passos lentos e doridos os degraus que o afastavam de ficar à distância mais correcta do caixão onde repousava o corpo do seu primogénito. O professor doutor Alberto José Nunes Correia Ralha assistiu a tudo, como um rochedo que resiste à erosão porque assim é suposto, amparado por mim e pelo meu irmão Bernardo. Ao meu lado, com um vestido bonito e estranhamente apropriado à ocasião, a Diana chorava. Suspendi por instantes o acto constitucional de dureza exterior entre os Oliveira-Ralha e fiz-lhe uma festa, repetindo-o com o Paulo, aquele de entre nós que mais novo ficou sem pai. A cerimónia foi curta e nada planeada, mas pareceu-me mil vezes mais verdadeira do que a encomendação de alma que o padre fizera na distante terça-feira. A Maria, namorada do meu pai durante os seus últimos anos de vida, verteu primeiro a sua imensa tristeza, seguindo-se o André Gonzaga, para quem a perda do homem que o ajudou a criar durante quase uma década chegou meses depois da morte do seu pai biológico. E por fim subi o último degrau. Fiquei lado a lado com o corpo do meu pai, passei-lhe uma última vez as mãos por aquele glorioso cabelo branco encaracolado - "glorioso" era o adjectivo que o José Ralha mais utilizava, pelo que o utilizo enquanto verdadeira descrição dos factos e homenagem - e disse curtas palavras que talvez pudessem ter sido mais fluidas mas dificilmente mais verdadeiras e sentidas. Daquilo que me lembro - e sempre que falo em público tenho alguma dificuldade em recordar o que disse -, expliquei que ele não era um pai do sentido mais hollywoodesco da palavra - saiu-me "hollywoodesco", vá-se lá bem porquê, quando a palavra certa seria (ou não) "tradicional" -, mas tinha muito para ensinar e dera muito daquilo que ele era não só aos filhos como também às pessoas que com ele se cruzaram ao longo da vida. Mais disse que o meu pai nem sempre fez as escolhas correctas ao longo da sua vida, mas que os erros por si cometidos não tinham sido por maldade. E ainda que, da sua forma nem sempre fácil de entender, ele gostava muito dos seus filhos. Posto isto desci um degrau e voltei a amparar o meu avô. Mais ninguém falou em memória de José Ralha. Os senhores que faziam os possíveis por ser invisíveis certificaram-se de que estava tudo dito e fizeram o que tinham a fazer: o caixão foi fechado e levado até a um estrado que, graças a um sistema mecânico, fez com que o corpo do meu pai avançasse alguns metros, atravessando uma espécie de cortina até ao lugar onde se converteria em cinzas.

14 Comments:

Blogger just me said...

Nem sei que diga! Olha, um abraço!

4:28 PM  
Blogger Filipe Moura said...

Um grande abraço, Leonardo.

7:09 PM  
Blogger Rui said...

Os meus sentimentos, Leonardo.

10:35 PM  
Blogger Miguel Marujo said...

Um forte abraço! E um obrigado pelas tuas palavras, num dia em que só vocês mereciam.

12:00 AM  
Blogger Paulo Ferrero said...

Então, não há por aí um email?
Abr.Paulo Ferrero

11:29 AM  
Blogger Isa said...

Um grande beijinho.

12:19 PM  
Blogger MPR said...

Do éter da blogosfera, um abraço.

2:05 PM  
Blogger Telescópio said...

Abraço, companheiro.

4:18 PM  
Blogger MANHENTE said...

O seu texto chocou-me. Hoje mesmo, inexplicavelmente,passou-me pela cabeça se escreveria alguma coisa nos meus blogues após a morte de alguém que me seja próximo. E encontro o seu texto. Que é belíssimo, mau grado o momento que descreve. Parabéns pela coragem e continue a sua caminhada, que a estrada não acaba aqui.

10:22 PM  
Blogger Vìtor Matos said...

Hoje não te vi, lá no teu lugar. Não sabia. Um abraço.

11:46 PM  
Blogger fbarragao said...

Lamento imenso a sua perda, Leonardo.
Eu próprio perdi o meu pai há 9 anos. Ia eu fazer os 16.
Se o José Ralha era mesmo tudo aquilo tudo que transparece3 do seu texto, perdemos um daqueles que já não se fazem. Como o meu pai, de resto.
Quando lhe perguntarem por que razão Portugal está como está, responda-lhes que é porque os nossos melhores se estão a extinguir.

Um abraço,
Fernando Barragão.

4:56 PM  
Blogger Ricardo Felner said...

Abraços a ti e à Diana.

5:25 PM  
Blogger Rui Avilez said...

Caro amigo
Peço desculpa por não estar presente no último adeus ao meu amigo bom amigo José Ralha, mas fica a lembrança de algumas horas passadas ao pé dele. E a minha homenagem ao homem e ao artista numa pequena homenagem que tenho no meu site www.inlocomundodacerveja.com, que gostaria de partilhar com todos os amigos desse grande ser humano.
Um abraço atrasado, mas somente hoje vi o seu blog.

1:43 PM  
Anonymous Anonymous said...

Já passou bastante tempo desde a triste notícia da morte de José Ralha. De qualquer forma, gostaria de partilhar com todos a pintura de José Ralha, na capa de Uma Frescura de Asas, de António Quadro.

Aqui: http://www.europress.pt/TEMAS/Literatura/FrescuraAsas.htm

Podem ser lidos alguns excertos da obra aqui: http://antonioquadros.blogspot.com/search?q=uma+frescura+de+asas

4:48 PM  

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