E não sei porque escrevo isto
Há pouco mais de quatro horas despedi-me do meu pai. Os senhores do Cemitério do Alto de São João faziam o possível por lograrem a invisibilidade mas era evidente que não podíamos prolongar o acontecimento pela manhã dentro. Já dentro do crematório lembrei-me da solidária azáfama do velho taxista a inventar faixas de rodagem inexistentes para combater os pisa-ovos cumpridores do Código da Estrada que enchiam a Rua Barão de Sabrosa. Mesmo assim cheguei atrasado ao encontro com o José Ralha, pelo que cumprimentei apressadamente quem já lá estava - os meus três irmãos, a minha mãe, a mãe dos meus irmãos mais novos, os irmãos dos meus irmãos mais novos, os meus amigos José Eduardo e Andreia, a namorada do meu pai, amigos do meu pai, amigos da família... - e sentei-me perto do meu avô. Ajudei-o a levantar-se quando chegou o momento de ser quebrado o silêncio e agarrei-lhe o braço enquanto aquele homem irrepetível, até porque o molde perdeu-se na sucessão das décadas, vencia em passos lentos e doridos os degraus que o afastavam de ficar à distância mais correcta do caixão onde repousava o corpo do seu primogénito. O professor doutor Alberto José Nunes Correia Ralha assistiu a tudo, como um rochedo que resiste à erosão porque assim é suposto, amparado por mim e pelo meu irmão Bernardo. Ao meu lado, com um vestido bonito e estranhamente apropriado à ocasião, a Diana chorava. Suspendi por instantes o acto constitucional de dureza exterior entre os Oliveira-Ralha e fiz-lhe uma festa, repetindo-o com o Paulo, aquele de entre nós que mais novo ficou sem pai. A cerimónia foi curta e nada planeada, mas pareceu-me mil vezes mais verdadeira do que a encomendação de alma que o padre fizera na distante terça-feira. A Maria, namorada do meu pai durante os seus últimos anos de vida, verteu primeiro a sua imensa tristeza, seguindo-se o André Gonzaga, para quem a perda do homem que o ajudou a criar durante quase uma década chegou meses depois da morte do seu pai biológico. E por fim subi o último degrau. Fiquei lado a lado com o corpo do meu pai, passei-lhe uma última vez as mãos por aquele glorioso cabelo branco encaracolado - "glorioso" era o adjectivo que o José Ralha mais utilizava, pelo que o utilizo enquanto verdadeira descrição dos factos e homenagem - e disse curtas palavras que talvez pudessem ter sido mais fluidas mas dificilmente mais verdadeiras e sentidas. Daquilo que me lembro - e sempre que falo em público tenho alguma dificuldade em recordar o que disse -, expliquei que ele não era um pai do sentido mais hollywoodesco da palavra - saiu-me "hollywoodesco", vá-se lá bem porquê, quando a palavra certa seria (ou não) "tradicional" -, mas tinha muito para ensinar e dera muito daquilo que ele era não só aos filhos como também às pessoas que com ele se cruzaram ao longo da vida. Mais disse que o meu pai nem sempre fez as escolhas correctas ao longo da sua vida, mas que os erros por si cometidos não tinham sido por maldade. E ainda que, da sua forma nem sempre fácil de entender, ele gostava muito dos seus filhos. Posto isto desci um degrau e voltei a amparar o meu avô. Mais ninguém falou em memória de José Ralha. Os senhores que faziam os possíveis por ser invisíveis certificaram-se de que estava tudo dito e fizeram o que tinham a fazer: o caixão foi fechado e levado até a um estrado que, graças a um sistema mecânico, fez com que o corpo do meu pai avançasse alguns metros, atravessando uma espécie de cortina até ao lugar onde se converteria em cinzas.
14 Comments:
Nem sei que diga! Olha, um abraço!
Um grande abraço, Leonardo.
Os meus sentimentos, Leonardo.
Um forte abraço! E um obrigado pelas tuas palavras, num dia em que só vocês mereciam.
Então, não há por aí um email?
Abr.Paulo Ferrero
Um grande beijinho.
Do éter da blogosfera, um abraço.
Abraço, companheiro.
O seu texto chocou-me. Hoje mesmo, inexplicavelmente,passou-me pela cabeça se escreveria alguma coisa nos meus blogues após a morte de alguém que me seja próximo. E encontro o seu texto. Que é belíssimo, mau grado o momento que descreve. Parabéns pela coragem e continue a sua caminhada, que a estrada não acaba aqui.
Hoje não te vi, lá no teu lugar. Não sabia. Um abraço.
Lamento imenso a sua perda, Leonardo.
Eu próprio perdi o meu pai há 9 anos. Ia eu fazer os 16.
Se o José Ralha era mesmo tudo aquilo tudo que transparece3 do seu texto, perdemos um daqueles que já não se fazem. Como o meu pai, de resto.
Quando lhe perguntarem por que razão Portugal está como está, responda-lhes que é porque os nossos melhores se estão a extinguir.
Um abraço,
Fernando Barragão.
Abraços a ti e à Diana.
Caro amigo
Peço desculpa por não estar presente no último adeus ao meu amigo bom amigo José Ralha, mas fica a lembrança de algumas horas passadas ao pé dele. E a minha homenagem ao homem e ao artista numa pequena homenagem que tenho no meu site www.inlocomundodacerveja.com, que gostaria de partilhar com todos os amigos desse grande ser humano.
Um abraço atrasado, mas somente hoje vi o seu blog.
Já passou bastante tempo desde a triste notícia da morte de José Ralha. De qualquer forma, gostaria de partilhar com todos a pintura de José Ralha, na capa de Uma Frescura de Asas, de António Quadro.
Aqui: http://www.europress.pt/TEMAS/Literatura/FrescuraAsas.htm
Podem ser lidos alguns excertos da obra aqui: http://antonioquadros.blogspot.com/search?q=uma+frescura+de+asas
Post a Comment
<< Home