O desgraçado que fez por me desgraçar
Já a minha conversa com o agente da PSP numa sala sem janelas do prédio da Avenida Coronel Galhardo ia a caminho do fim quando ele abriu um dos vários volumes dedicados às malfeitorias praticadas pelo "meu" ladrão em 14 residências lisboetas. Não demorou a encontrar a página enfeitada por várias fotografias do homem de 31 anos - quase sorri ao constatar que os seus dois nomes próprios são os mesmos de um meu camarada de futeboladas na infância e juventude e que as iniciais desses nomes são exactamente iguais às minhas - que em Setembro de 2006, poucas semanas após o encerramento do "Independente", introduziu-se em minha casa pela janela do escritório e saiu pelo outro lado deste quarto andar na companhia de um computador portátil de estimação, uma "powerbox" e um comando da TV Cabo, uma Playstation anacronicamente cinzenta e várias jóias que ao longo dos anos de namoro e concubinato ofereci à minha "better half". Olhei com a maior atenção para os retratos de quem era até esse instante uma abstracção enviada pelo destino para me lixar. Vi um homem magro, esguio, de origem africana e com inquestionável mau aspecto - mas suponho que também eu não sairia muito bem na fotografia caso a PSP me tivesse acabado de interromper tão lucrativa carreira... -, terrivelmente derrotado pelas circunstâncias, talvez já a pensar em todos os locais do crime anteriores onde, após valer-se de assinalável engenho e agilidade, cometeu a burrice de deixar impressões digitais. Aquele desgraçado é o homem que me piorou a existência quando menos disso precisava, o homem que levou a que a minha mulher tivesse medo de ficar sozinha na sua casa, o homem que transformou um taco de basebol até então visto como peça de decoração numa arma de destruição em massa estacionada em permanência entre a cama e a mesa de cabeceira. As hipóteses de recuperar aquilo que nos roubaram - dentro do computador, por exemplo, estavam textos de enorme importância - é diminuta, visto que o homem que aguarda julgamento em prisão preventiva teve o bom-senso de não denunciar o receptador dos produtos que roubava. Compreendo-o: ao contrário do que acontecia nos tempos do senador Joseph McCarthy, dar nomes é o caminho mais rápido para a lista negra no mundo do crime. Lembro-me agora do ladrão como um desgraçado mas abstenho-me de sentir qualquer pena. Embora tenha dez vezes menos confiança no sistema judicial do que na polícia, confio que o homem que partilha comigo as iniciais ficará longe das ruas durante uns bons anos.
1 Comments:
fico contente.
Post a Comment
<< Home