Saturday, May 26, 2007

Fim de expediente na Telepizza


O destino conduziu-me, poucos minutos antes das onze da noite de quinta-feira, à Telepizza situada no cruzamento da Óscar Monteiro Torres com a Oliveira Martins. A encomenda já tinha sido feita quando eu ainda procurava carta de alforria de mais uma edição do “Correio da Manhã”, pelo que a missão parecia simples: chegar antes de os representantes da geração do emprego precário decidirem encerrar portas, pedir a Pizza Terra requerida por um determinado número de telemóvel, retirar uma quinzena de euros da minha carteira já ligeiramente gasta pelas entradas e saídas dos bolsos dos casacos e carregar um jantar alternativo até ao quarto andar esquerdo do melhor número de polícia da Rua Augusto Gil.
Puro engano. Quando o táxi me descarregou na supracitada esquina de Lisboa a Telepizza ainda se encontrava em horas de expediente mas os seus funcionários aparentavam partilhar uma letargia pós-coital – suponho que faz algum sentido, visto que haviam sido copulados pela entidade empregadora ao longo das horas anteriores – e foi a custo que logrei ver a minha presença reconhecida por uma rapariga cujo ânimo aparentava ter sido removido num complexo acto cirúrgico. Depressa percebi que a Pizza Terra – desprovida de cebolas mas com todo o tomate e azeitonas que um homem de boa vontade pode desejar – ainda era mais massa do que jantar e aproveitei para hibernar alguns minutos, abstraindo-me do mundo apesar de carregar na mão direita a pasta carregada de papéis que denunciava o meu estatuto de trabalhador que não está sujeito à tirania da ida para casa às seis, sete ou oito da noite. Assim teria permanecido todo o tempo necessário para a conclusão do projecto alimentar no forno industrial instalado frente aos meus olhos não fosse ter a felicidade de testemunhar o drama do quotidiano que passarei a descrever.
Nunca cheguei a ver a personagem principal. Só sei que se trata de um homem, visto que a co-protagonista da história várias vezes o tratou por “senhor”. Talvez seja novo, talvez seja velho, talvez seja entre uma coisa e outra, assim como eu começo a estar. Branco, negro, amarelo ou azul, é provável que também não lhe tenha apetecido fazer jantar na noite de quinta-feira. E telefonou para a Telepizza. A sua noite poderia tornar-se a partir daí banal, não fosse ter uma morada desaconselhável. Isto, claro está, a acreditar na reacção dos funcionários ao longo dos minutos seguintes. A rapariga que com ele falava tentou dizê-lo da forma mais delicado possível, mas a realidade abatia-se como um bloco de 16 toneladas: nenhum entregador de pizzas estava na disposição de trocar o sobreaquecido conforto da esquina da Óscar Monteiro Torres com a Oliveira Martins por um bairro onde nada de bom poderia acontecer.
Posso jurar que o homem que queria jantar pizza deu o seu melhor. A rapariga, assaz perturbada com as reservas que colocava ao cliente que supostamente tem sempre razão, garimpou soluções. Talvez ele pudesse deslocar-se até à esquadra da PSP mais próxima, assegurando que o olhar vigilante dos agentes dissuadiria a inevitável ocorrência de um assalto. Mas não. A esquadra ficava a um quilómetro. Feitas as contas, dois mil metros, metade dos quais com uma caixa cartonada de pizza fumegante e oleosa nas mãos, estariam longe de ser o complemento mais agradável para uma jornada que se adivinhava ter sido difícil – quem no seu perfeito juízo encomenda pizza a poucos minutos das onze da noite de uma quinta-feira se o dia tiver sido fácil? Depois de ouvir isto, a rapariga fardada de vermelho iniciou um diálogo tenso com o entregador de sotaque brasileiro, quase que regateando uma última saída com os ridículos veículos de dois rodas que cruzam todas as ruas de Lisboa. Ou, melhor dizendo, quase todas as ruas de Lisboa. O aparente imigrante mostrou-se inflexível. Não lhe apetecia ter uma navalha encostada ao estômago, ou à garganta, ou adivinhar futuras reprovações do supervisor. Não, não e não. Se dele dependesse, o homem que continuava do outro lado da linha poderia muito bem morrer de fome. Ninguém no seu perfeito juízo iria àquela rua, daquele bairro, àquelas horas da noite.
O homem que queria uma pizza fez uso de todos os argumentos que tinha ao seu dispor. Para início de conversa, junto à sua casa estava ainda aberto um café. Haveria, portanto, movimento e nunca ninguém arriscaria assaltar. Pelo menos foi isto o que a rapariga fardado de vermelho disse ao entregador brasileiro. Este não alterou a rigidez do rosto e da vontade. Fazer chegar uma pizza a tais coordenadas seria pouco menos do que um suicídio. Ninguém no seu perfeito juízo o faria e ele tinha-se em conta de proprietário de uma mente sã e de um corpo que assim pretendia permanecer. O impasse instalou-se, a conta telefónica do candidato a cliente continuava a agravar-se e por essa altura eu já desejava que a Pizza Terra demorasse mais uns minutos a ficar pronta, visto que nos dramas reais – ao contrário dos livros e dos filmes – é impossível ir directo à última página ou accionar a função de “fast forward”. E, mais do que sentir compaixão pelo homem da rua perigosa, pela rapariga que atendeu o telefone e pelo entregador – personagens de um drama irresolúvel em que não me permitia discernir quaisquer herói ou vilão -, eu queria por essa altura saber o fim da história.
Estava perdido nestes pensamentos quando a rapariga fardada de vermelho tomou uma decisão. Pediu de forma educada ao homem que queria pizza para aguardar mais uns instantes e rumou ao interior do rés-do-chão daquele prédio de esquina da Óscar Monteiro Torres e Oliveira Martins. Segundos depois regressou com um homem que, embora trajando vestes tão juvenis quanto as dos colegas, tinha voz de superior hierárquico. O recém-aparecido disse algo misterioso ao entregador brasileiro e este, manifestamente contrafeito, desceu o queixo uma dezena de graus abaixo do ângulo recto. Acabara de ser derrotado mas ainda assim procurou ver estabelecidas condições. Queria que o cliente estivesse à porta do prédio quando a motoreta lá chegasse, assegurando que a troca de pizza, notas e moedas decorreria numa porção de segundos diminuta ao ponto de não atrair a atenção de inimagináveis predadores. O homem apresentou uma contraproposta: ficaria à janela e desceria logo que avistasse a chegada do jantar. Chegou-se a um acordo e iniciou-se a produção da pizza, certamente a última que sairia do forno nessa quinta-feira.
Fui para casa com a secreta esperança de que nada de mal acontecesse na rua perigosa de um bairro suficientemente próximo daquele em que vivo para ficar na zona de influência da mesma Telepizza. Talvez o homem quisesse mesmo terminar o dia com o estômago mais guarnecido. Talvez o entregador regressasse são e salvo e fosse de seguida descansar ou divertir-se antes de o despertador começar a dar ordens. Talvez a rapariga não se arrependesse de confiar na bondade dos propósitos do homem com quem falou ao longo de vários minutos.
Pela minha parte não tive grande sorte. A Pizza Terra não era grande coisa.

1 Comments:

Blogger Dia said...

Muito bom, brother, mto bom.

7:00 PM  

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