Monday, June 25, 2007

Uma minificção canalha para dar início à semana

Só numa madrugada de insónias em que prestou mais atenção do que o habitual às intempéries profetizadas nos antípodas pela apresentadora da meteorologia de uma televisão estrangeira é que Eufrasino Boaventura percebeu a fina ironia cósmica de o seu nemésis na repartição pública, aquele que ano após ano sempre ficou um passo à sua frente em cada promoção, se chamar Vitorino.

Sunday, June 24, 2007

Metade já passou, agora falta outro tanto

Ou isso ou os corvos do S. Vicente

Floresce em mim a ideia de num punhado de segundos, sem exagerar nos pormenores da pelagem e do número de dedos e de garras em cada pata, desenhar um dos gatos vampirescos que incessantemente traço durante as reuniões de edição quando na mesa de voto me entregarem o boletim de voto através do qual eu e o restantes lisboetas seremos chamados a escolher o próximo presidente da câmara municipal.

Adivinhem quem veio "postar"

Reparo, após tantos dias de falta de contacto com o Blogger, que o "post" anterior a este havia sido o número 800 do Papagaio Morto. Abstraindo a enorme quantidade de chico-espertices, piadas ácidas e considerações vagamente político-ideológicas acerca da vida neste rectângulo e no resto da Planeta Terra, uma razoável parte destas oito centenas de "posts" guardam, através dos eméritos serviços de uma "corporation" norte-americana, pedaços da magnífica tragicomédia da vida humana que testemunhei enquanto observador nem sempre excessivamente interveniente. Ainda bem: como diria o líder dos replicantes no "Blade Runner", as memórias são momentos perdidos no espaço, tal qual lágrimas na chuva. Mas por vezes valem mais do que mil imagens, visto que, mais do que as fotografias ou os retratos, são como um barro que podemos moldar a nosso bel-prazer.

Sunday, June 10, 2007

Dia de aniversário de um pedinte distinto

Seguia carregado com sacos de plástico cheios de jornais diários, camisas de verões passados resgatadas do armário da casa da minha mãe e uma tarte de maçã do Pingo Doce praticamente por estrear quando o cavalheiro me interpelou. Os raios de Sol que dominavam o cenário junto ao King Triplex e ao Teatro Maria Matos dificultaram a missão, mas reconheci-o de imediato. Não só o homem empregava um português perfeito, o que vai sendo raro numa classe profissional dominado por oriundos de Timisoara, como são raras as pessoas vestidas de forma tão distinta cuja missão é pedir esmola a quem com elas se cruza. Tal como da primeira vez que nos encontrámos, há uns quantos meses, o homem de cabelos brancos, barba bem aparada e camisa imaculada demorou a chegar ao assunto. Quando finalmente me disse o que já esperava - parecia impossível, mas estava a pedir-me esmola (imaginem a palavra "esmola" pronunciada de tal forma que, caso o diálogo fosse escrito e não falado, não desmereceria um itálico...) -, apressei-me a fazer aquilo que o mestre Álvaro de Campos descreveria como dar~lhe "tudo quanto tinha (excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro)". Concluída a operação, o homem fez questão de continuar a falar comigo, ignorando o calor tórrido e o facto de ter acabado de ficar um pouco mais próximo da possibilidade de jantar. Disse-me o quanto o desemprego é uma coisa terrível e eu, que nem tenho assim tão má memória, concordei. Suponho que ali ficaríamos largos minutos não fosse o facto de os sacos estarem pesados e o relógio não ter função de "pause" embutida. Despedi-me do homem e ele fez questão de me dar um aperto de mão firme, de homem, e de anunciar que hoje era o seu 60.º aniversário. Dei-lhe os parabéns, voltei a acelerar a passada e durante um número razoável, mas não excessivo, de minutos criei uma agência de apostas dentro do meu cérebro: se a triste história fosse verdadeira a casa pagaria três euros por cada um investido, subindo o prémio para cinco euros caso o cavalheiro tivesse problemas mentais que o levassem a considerar-se um mendigo e chegando a nove euros se tivesse engendrado a triste narrativa para apurar até que ponto são ingénuos os seus concidadãos. Mas de qualquer forma eu saí a ganhar: ajudar alguém que passa necessidades ou levá-lo a convencer-se de que ainda subsiste alguma solidariedade nas ruas de Lisboa é um objectivo que valeu o sacrifício de uma moeda de dois euros que me estava a fazer peso na carteira.

Um novo vício de Leonardo Ralha


Visto que na esmagadora maioria das horas em que estou desperto tenho barreiras intransponíveis ao Blogger, ganhei o hábito de aproveitar segundos mortos para observar as imagens híbridas (mistura de mapa rodoviário com imagens de satélite) disponíveis no fantástico Maps.Google. É assim que observo do alto, qual aspirante a Criador de Todas as Coisas, a minha casa, a casa do meu avô paterno, a aldeia em que o meu avô materno nasceu, o mercado municipal viseense que esmagou o expropriado jardim que servia de passatempo à minha avó materna, a esplanada do Sven frente à Praia de Carvoeiro que tão cedo não conseguirei visitar... A paz que retiro deste exercício é tão grande que ainda nem comecei a recorrer ao mesmo "site" para observar locais onde nunca estive, como Manhattan, Los Angeles, Tóquio ou Singapura.

Uma pergunta em jeito de parábola

Dou alvíssaras ao historiador que me esclareça uma singela dúvida: como é que os remadores das galés romanas ocupariam as suas folgas semanais?

Tuesday, June 05, 2007

À noite todos os gatos são pretos


Ao longo da semana passada deu-se uma coincidência bizarra: em três das sete vezes que arrastei o meu corpo no percurso entre a redacção do "Correio da Manhã" e as minhas humildes assoalhadas, escassos minutos antes ou depois das onze horas da noite, cruzei-me com um gato preto*. Em duas ocasiões (terça-feira e domingo), o gato* estava na Avenida João Crisóstomo, mas um dos avistamentos ocorreu na esquina da Avenida João XXI com a Rua Augusto Gil (quarta-feira), a dezena e meia de metros da porta do meu prédio. Suponho que a esmagadora maioria das pessoas ficaria aterrada caso tal coisa lhes sucedesse. Algumas por padecerem da tenebrosa doença chamada superstição, outras por estarem a sair do emprego às onze da noite. Eu tenho mais sorte: gosto imenso de gatos pretos, e não raras vezes dou por mim a considerá-los as mais perfeitas criaturas da Natureza, admirando-lhes a felina altivez do olhar e a extrema elegância dos movimentos. Quanto à hora de chegada a casa sobra-se a compensação de que pelo menos assim não me dou ao trabalho de escolher o lado da rua que tem mais sombra.

* Estou em crer que se tratava de uma gata. Não por ter procedido a um qualquer exame médico - quando digo que gosto imenso de gatos pretos cumpre esclarecer que não gosto deles da mesma forma que um dos suspeitos do rapto da pequena Madeleine McCann aparenta gostar... -, mas por a estatura do felino em questão levar-me a presumir o seu género. A parte mais estranha da coincidência ainda é a minha convicção de que se tratava do mesmíssimo animal nas três ocasiões.

Monday, June 04, 2007

Eu e a espada do meu pai


Imaginem uma nova versão de uma velha história. Artur aproxima-se da espada Excalibur, contempla a beleza da arma de guerra, apercebe-se de que poderá ser o homem capaz de a separar da rocha mas, apesar disso - ou justamente por causa disso -, decide virar-lhe costas e seguir o seu caminho. Aconteceu-me mais ou menos isto há pouco mais de três horas, numa das visitas ao meu avô que me esforço por serem menos intervaladas desde que, há apenas quatro semanas, o meu pai morreu. Há muito tempo que não descia da casa para o jardim, no qual o José Ralha investiu milhares de contos, fazendo as delícias dos vendedores de palmeiras e afins da Margem Sul. Cruzei o relvado onde tanto corri noutras décadas e, após folhear a imprensa diária à sombra de uma estrutura metálica que a imaginação transformou numa gigantesca gaiola para pássaros, aventurei-me a atravessar o riacho de águas turvas e peixes vorazes que divide a meio a Casa do Outeiro. Percorri o trilho empregando o máximo de precaução para evitar esmagar as flores que tingem de cores vivas aquela parcela de terreno e em poucos segundos cheguei ao que na minha infância era a casa do Sr. João, o caseiro de pele curtida ao Sol e dono de um rafeiro chamado Cubillas que tomava a seu cargo a subsistência das plantas do meu avô. De há uns anos para cá a habitação, espaçosa mas assaz despojada, havia sido anexada pelo meu pai, que dela fizera uma espécie de "atelier". Não me admirei por tudo ali permanecer tão caótico como ele provavelmente terá deixado, sem imaginar que não haveria amanhã, jazendo diversas versões das suas peculiares naturezas mortas junto a arbustos e às enormes tijelas em que os gatos vadios que ele adoptara são ainda alimentados com biscoitos que o meu felinofóbico avô se recusa a custear. O que realmente me espantou foi a espada cravada na terra. Não uma das espadas reluzentes que o meu pai guardava em casa, mas sim uma de tal modo enferrujada que parecia ter saído já assim da forja. Aproximei-me do objecto estrangeiro às minhas memórias, calcando a espessa relva que cresce naquelas paragens, e não resisti a tentar retirá-la do solo. A primeira tentativa foi quase risível: sobrevalorizara o poderio da minha mão direita e a terra resistiu à investida sem dificuldades de maior. Tentei novamente, desta vez com ambas as mãos. Após um instante de incerteza senti a proximidade do triunfo, pois a espada elevou-se alguns centímetros. Suponho que bastaria um novo puxão para a erguer em direcção ao céu, o que teria o seu quê de infrutífero na medida em que nem um sol tão abrasador quanto o desta tarde lograria fazer reluzir uma espada tão ferrugenta quanto aquela. Talvez por isso, ou talvez por outra razão qualquer, desisti do meu vazio intento. Usei novamente da força braçal, mas desta vez para assegurar que a espada do meu pai ficaria cravada ainda mais fundo. E, posto isto, virei-lhe costas e segui o meu caminho.
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