Não tenho memória paquidérmica mas duvido que algum dia possa esquecer o primeiro rosto conhecido que avistei depois de tomar conhecimento da morte do meu pai. O desafortunado foi o João Saramago, meu camarada de secção no "Correio da Manhã", à frente do qual passara longas horas do fim-de-semana na árdua missão de vencer os espaços em branco no maléfico Milenium Editor, transformando-os em artigos que mereçam captar a atenção das vastas centenas de milhares de leitores do matutino onde vim desaguar. O João, que é moço para contar com mais um punhado de anos do que eu, muito embora ninguém possa acreditar nisso sem provas laboratoriais devido ao efeito rejuvenescedor da extrema decência e bondade que dele irradiam, vinha tranquilo da vida no gozo da sua primeira folga, carregando alguns sacos cheios de compras para casa, quando encontrou o seu editor na Avenida Cinco de Outubro e, sorrindo perante tamanha coincidência, perguntou se estava tudo bem. Se calhar podia ter mentido, melhor dizendo omitido, mas não fui capaz. Limitei-me a comunicar, ignoro se da forma mais coordenada, que acabara de receber a notícia da morte do meu pai. Ele ficou chocado e fez o possível por me rebocar para uma mesa de café, mas nesse momento eu já assumira o papel de Coelho da Alice. Tão atrasado para tanta coisa que me limitei a tocar-lhe no ombro, temendo que sucedesse como na canção do Sérgio Godinho e a marca ficasse lá, voltei a atravessar a rua, ainda com o telemóvel em punho, mas com o pesado caderno de encargos a tornar o velho Nokia quase impossível de suster. Dos meus três irmãos, a Diana estava em lua-de-mel nos Açores, o Bernardo a trabalhar na Irlanda e o Paulo a fazer o mesmo na Escócia. E ainda havia a minha mãe, sobrevivente de duas coabitações com o pintor José Manuel Xavier Correia Ralha.
Menos de um minuto antes de tudo isto acontecer, a minha segunda-feira, denominada 7 de Maio de 2007 no calendário, era assaz diferente. Acordara tarde e derreado na ressaca de sete dias seguidos a bulir no "Correio da Manhã", mal conseguindo elevar-me nos calcanhares para apoiar decentemente a Marina na preparação para o primeiro dia de novo emprego. Tão preguiçoso estava que só perto da uma da tarde telefonei à minha mãe, com quem supostamente iria almoçar. Quando o fiz percebi que ela estava demasiado atarefada, pelo que adiei a conversa e refeição para o dia seguinte. Restava-me uma viagem ao reino da burocracia para safar dentro dos limites do safável a minha irmã Diana de uma tremenda enrascada e talvez houvesse tempo para ir ver um dos filmes de que vou assistindo aos "trailers" quando os meus abreviados sucedâneos de almoço decorrem no Pans & Company situado perto da entrada dos cinemas do El Corte Inglés. Fui à Caixa dos Jornalistas e por lá me disseram que a questão devia ser colocada aos serviços da Segurança Social perto do Saldanha. Tendo em conta a razoável distância dei por mim a resolver encetar uma daquelas caminhadas de que tanto gosto e que fazem de mim um dos obesos com "lifestyle" mais saudável que andam por aí. O instante fatal ocorreu quando atravessava para o lado menos tórrido da Avenida Cinco de Outubro: o telemóvel começou a tocar e o número que aparecia no ecrã era o de casa do meu avô. Fui de imediato invadido por um mau pressentimento e o meu espírito ficou ali especado no meio do alcatrão enquanto as pernas arrastavam o corpo para a segurança do separador central. Ao atender ouvi a voz da Madalena, a sempre presente governanta da casa do meu avô. O tom aflito da sua voz dizia tudo mas a minha surdez, o ruído dos automóveis e a vontade de não ouvir fizeram com que pedisse uma, duas, três confirmações. À quarta ou quinta tentativa já era o marido dela que tomara conta do telefone. E eu tinha que ser forte. E o meu pai tinha morrido. Sentira-se mal enquanto estava ao telefone com a namorada e deixou de falar. Ela alertou o meu avô e a Madalena, mas quando eles chegaram já tudo era definitivo. O pintor, designer gráfico e homem José Ralha, meu pai, morrera na mesma casa para lá dos Capuchos que, desde os tempos de criança encaracolada, quando eram dele todos os sonhos do Mundo, enchera com a sua presença. Ainda tive capacidade de perguntar como estava o meu avô, mas do outro lado da linha já só havia apelos: tinha que para lá o mais depressa possível e tinha de avisar os meus irmãos.
Após despedir-me do João Saramago iniciei aquilo que me cabia fazer. Atravessei novamente a Avenida Cinco de Outubro e, protegido pela sombra das árvores da Avenida Elias Garcia, telefonei à Diana, cruzando os dedos para que ela estivesse numa das zonas privilegiadas da ilha de São Miguel em que a Optimus tem rede. Resultou, pois a minha irmã, acabadinha de casar no domingo passado e desde então desapossada do seu emprego, atendeu após um quarteto de toques, esperando decerto novidades acerca das burocracias que me incumbira de desbravar. E eu, a quem o Ministério do Trabalho não se lembrou de oferecer formação profissional na área da entrega de notícias ruins, resolvi entrar no assunto pela negação de um outro cenário. Suponho que terei dito que algo terrível acontecera mas que a nossa mãe, a fortaleza de olhos azuis que nos criou o melhor que soube e pôde, estava bem. Estabelecido este ponto, a minha irmã perguntou-me se era o avô Ralha a razão do desajeitado telefonema. Respondi-lhe, da forma mais serena - ainda que as palavras que saíam da minha boca soassem a uma linguajar babélico -, que o nosso pai tinha morrido. Assim, através de um telemóvel de fabrico finlandês, algures na Avenida Elias Garcia, com a Diana encurralada por um oceano imenso, cinzento e revolto. Ouvi, impotente, o choro dela e nunca me passou pela cabeça apelar-lhe a que fosse forte. Deixei-a simplesmente chorar e, como que para afastar a nuvem negra por uns instantes, anunciei-lhe quais seriam os meus próximos passos, após o que demos por terminado a primeira de muitas conversas telefónicas ao longo dessa segunda-feira.
Desligado o telemóvel o meu cérebro e as minhas pernas mantiveram a falta de sintonia. Uma força desconhecida encaminhou-me num ilógico e desnecessário desvio para a Avenida da República. Por entre uma mescla de edifícios centenários e aberrações arquitectónicas voltei a dedilhar o teclado do telemóvel. Liguei para a Marina, que por essa altura almoçava com o seu novo patrão e o seu novo colega de trabalho num restaurante do Campo Pequeno. Ao longo dos muitos meses em que deixei interrompido este post perdi a memória de muitos instantes deste dia igual a tantos outros em que, como sucede a todos os homens, a morte chegou a José Manuel Xavier Correia Ralha. Não posso por isso descrever as palavras que utilizei para descrever o que acabara de descobrir. Apenas garanto que recebi garantia de reforços para me ajudar a enfrentar algo para que nunca me lembrara de elaborar plano de contingência. Prossegui a caminhada, até porque o mais difícil seria parar. Cheguei a entrar numas instalações bancárias por acreditar que tais coordenadas me concederiam a ausência de ruído ambiente de que necessitava para telefonar aos meus outros irmãos. Debalde. Alheados de que um coração deixara de bater, damas e cavalheiros de aspecto decente procuravam consultar saldos bancários, liquidar contas de electricidade e tudo mais o que os terminais de multibanco permitem.
De regresso à via pública as minhas pernas levaram-me para a estreita Avenida Júlio Dinis onde passei meia década de estudante universitário a depradar direitos de autor com a cumplicidade de professores e empresários de centros de fotocópias. E foi só no final da artéria do Apolo 70, Arco-Íris e Columbia que me sentei num canteiro de pedra não excessivamente higienizado. Ganhei coragem e liguei para o Paulo, sem conseguir recordar-me se a chamada iria parar à Escócia, à Irlanda e a qualquer outro ponto da diáspora dos Ralha. Também não me recordo a esta altura do campeonato se ele atendeu à primeira tentativa. Mas acabou por fazê-lo. Quero acreditar que não lhe disse para ser forte. Mas não juro que assim tenha acontecido. Graças ao velho Nokia ouvi perplexidade, tristeza e a inquietação de quem passaria as horas seguintes à procura de um ou vários aviões capazes de lhe permitir estar presente. E foi nesse momento que me permiti fraquejar, atirando-lhe para cima a responsabilidade de contaminar com a notícia o nosso Bernardo. Poder-se-á dizer que o terei feito por o Paulo partilhar com o Bernardo herança genética de pai e de mãe, ou por terem crescido juntos, mas não. Fi-lo pura e simplesmente porque, estupidamente, cria já não ter capacidade para aguentar mais. Fi-lo porque queria descansar um bocado nesse canteiro frio e sujo, onde num dia normal não me passaria pela cabeça sentar-me, antes de a Marina vir ter comigo.
Nos instantes antes de ela chegar apreciei o silêncio. As pessoas continuavam a andar de um lado para o outro, não como formigas na terra, apenas seres humanos apressados, cheios de problemas, alegrias, tristezas, fantasias inconfessáveis. E eu por instantes de fora da corrente daquele rio. Uma quantidade indeterminada de minutos depois apareceu a Marina, com o seu novo patrão e o seu novo colega de trabalho a uma distância cautelosa. Nenhum deles me ficou a conhecer nesse instante. O primeiro estivera em pano de fundo no dia em que apresentei o meu primeiro (e, feliz ou infelizmente, único a esta data) romance na discoteca da moda que entre finais do século XX e primórdios do século XXI fez as vezes de minha sala-de-estar. Quanto ao segundo, basta dizer que, noutra vida e em tempos imemoriais, poder-se-á dizer, com uma enorme dose de exagero, que estivemos perto de ser aquilo que os antigos chamariam de concunhados. Não faço a mais ténue ideia daquilo que me disseram mas quero acreditar que terão sido palavras muito adequadas às circunstâncias. Já me esqueci de tanto nesta dezena de meses que se passaram entretanto. Tenho pena de não me recordar de todos os irrepetíveis detalhes desse dia. Mas, claro está, avisei desde a primeira linha que nunca tive memória de elefante.
Quando ficámos os dois sozinhos, eu e a Marina, naquela estreita e curta avenida onde tantas fotocópias de manuais de ciências inúteis carreguei, disse-lhe que era preciso avisar a minha mãe. Presencialmente. Após dois filhos, duas coabitações e tantos sentimentos conflituosos mais do que contraditórios, não poderia ser menos do que isso. Temia a reacção e, como sempre, um recanto do meu cérebro começou a traçar cenários e estratégias de actuação diferenciadas. Assim fiz enquanto era dirigido ao edifício da Dom Quixote, onde repousavam os haveres da minha "better half" no seu atribulado primeiro dia de trabalho. Percorri aquela reduzida fracção de quilómetro a arrastar o peso dos meus pensamentos e quando chegámos ao destino não tive coragem para subir às mesmas instalações onde meses antes, ainda desempregado e sem perspectivas de ocupação na linha do horizonte, fui recolher com um recibo verde emprestado os reduzidos proveitos da minha nada persistente produção literária. Optei por ficar num amplo e desocupado café situado no piso térreo, para onde fui conduzido até estar à distância correcta do balcão. Era um dia diferente dos outros mas em nada alterei os desaconselháveis hábitos socio-gastronómicos que me vêm acompanhando. Pedido o trinómio café-pastel de nata-esverdeada garrafa de Água das Pedras (entretanto substituído pela translúcida Frize Limão), encarreguei-me de destruir a massa do bolo cremoso com a imperfeita dentição que os genes de família me outorgaram. Se a vida fosse melhor escrita do que acaba por ser talvez ainda houvesse um último bom-bocado, esse bolo de massa mais espessa e saborosa do que o folhado dos pastéis de nata, que o José Manuel Ralha me ensinou a apreciar nos tempos em que cada um de nós desempenhava papéis de pai e filho de 15 em 15 dias e que ainda hoje se mantém como uma duradoura influência na minha existência. Terminado o consumo e liquidado o consumo, virei a atenção para o telemóvel momentaneamente deixado em pousio. Mesmo estando de folga durante mais um dia era chegado o momento de avisar que não ocuparia o meu computador na quarta-feira. Deveria ter ligado para a Manuela Guerreiro, que ainda hoje partilha comigo avultados encargos de tempo e neurónios enquanto subeditora de Sociedade do CM, mas o menu do Nokia guiou-me até ao número do Manuel Catarino.
(há-de continuar...)